domingo, 13 de junho de 2010

Anne Frank: a “face” das vítimas do holocausto nazista



Milhões de pessoas leram "Anne Frank: Diário de uma Jovem", obra que narra o cotidiano de uma garota judia e sua família, de 1942 a 1944, enquanto viviam no anexo secreto, um esconderijo em Amsterdã (Holanda).


O diário é um comovente testemunho sobre a maldade perniciosa dos nazistas. Sobre a obra, o escritor soviético llya Ehrenburg escreveu: "Uma voz fala pelos 6 milhões de judeus mortos; a voz não é de um sábio, nem de um poeta, mas de uma jovem como tantas e tantas outras"

A voz de Anne revestiu o Holocausto de uma face tangível, dando-lhe uma dimensão mais fácil de ser entendida, apesar da dificuldade da mente humana em lidar com tamanho horror. Assim, o Diário de Anne Frank se constitui como um legado sobre o qual ela se manifestou no dia 5 de abril de 1944, ao escrever: "Eu quero continuar a viver depois da minha morte e, por isso, sou grata a Deus por ter me presenteado com o dom de escrever, de conseguir expressar tudo o que está dentro de mim".

Uma curta vida

A vida da jovem destinada a ser a voz dos milhões de judeus mortos durante o Holocausto foi curta, mas significativa. Annelise Marie nasceu em 12 de junho de 1929, em Frankfurt, e era a segunda filha de Otto e Edith Frank, abastados judeus alemães. Os pais a chamavam de Anne.

Em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler ao poder, os Frank decidiram viver em Amsterdã, na Holanda. Otto se mudou imediatamente, pois se apresentara a oportunidade de montar uma franquia, a Opekta Works, para a comercialização de pectina, substância usada na fabricação de geléias. Edith, Anne e a irmã Margot se juntaram a ele, tempos depois. Em Amsterdã, voltaram a desfrutar de liberdade e relativa tranqüilidade, apesar das alarmantes notícias sobre a intensificação da discriminação aos judeus em outras partes.

Nem a tolerante e pacífica Holanda conseguiu escapar da fúria que se abateu sobre a Europa. Em maio de 1940, os exércitos alemães ocuparam o país, a monarquia foi deposta e o austríaco Artur Seyss-lnquart, conhecido por seu brutal anti-semitismo, assumiu o governo, dando início à campanha de perseguição judaica.

Otto, que não tinha ilusões sobre os nazistas, imediatamente tomou medidas para proteger sua família. Em setembro de 1941 transferiu a titularidade da firma a um dos ajudantes, Jo-Hannes (Jo) Kleiman, apesar de continuar à frente do empreendimento. Kleiman o ajudou a planejar o "mergulho", como era chamada a passagem de judeus para a vida na ilegalidade. Eles transformaram num esconderijo perfeito um anexo vazio na casa 263 da rua Prisengracht. Era um prédio atrás do escritório onde ficava o depósito da firma. Algum tempo depois, Otto pediu ajuda a mais três antigos e fiéis funcionários: Victor Krugler, Miep Gies e Bep Voskuij. Junto com Jo Kleiman, compunham o quarteto dos "Ajudantes".

No dia do seu 13° aniversário, 12 de junho de 1942, Anne recebeu de presente um diário. Ela não imaginava a importância que este teria. Quando, em 5 de julho, sua irmã Margot foi convocada pela Gestapo, os Frank decidiram que não podiam adiar nem mais um minuto o "mergulho". Assim, no dia seguinte passaram para a clandestinidade. Uma semana mais tarde, juntou-se a eles o casal Van Pels, sócios e amigos, e o filho Peter. Em novembro chegou o último ocupante, Fritz Pfeffer.

Um velho rádio, ao qual viviam colados, era, além dos "Ajudantes", seu único contato com o mundo exterior. Todos os cuidados eram necessários para que a vizinhança e os demais funcionários da empresa, principalmente os que trabalhavam no depósito, não suspeitassem que ali havia judeus escondidos.

Surpreendendo pela sua maturidade apesar dos 14 anos, Anne descreveu no diário, com pormenores, seu cotidiano e o dos outros "ocupantes". A sensação de estarem presos sem poder ver ainda que uma nesga do céu e o medo de serem descobertos estavam sempre presentes. Em vários trechos Anne dá detalhes das crescentes restrições e perseguições nazistas contra os judeus. Em março de 1944, a adolescente ouviu uma transmissão da rádio inglesa em que Gerrit Bolkestein, ministro do governo holandês no exílio, convidava os cidadãos a preservarem documentos e histórias pessoais sobre a guerra. A jovem então decidiu que ao término do conflito publicaria um livro baseado em seu diário.

Apesar do medo e do sofrimento, Anne nutria esperanças – prova d de que desconhecia a real face do Holocausto. Em uma de suas últimas anotações, em 15 de julho de 1944, escreveu: "Vejo o mundo se transformar, gradualmente, em um grande deserto, ouço o trovão se aproximando, o mesmo que nos destruirá a todos. Sofro com o sofrimento de milhões e, no entanto, se levanto os olhos aos céus, sei que tudo acabará bem, toda essa crueldade desaparecerá...". O diário de Anne Frank termina no dia 1° de agosto, três dias antes de sua prisão. Foram as últimas palavras que escreveu.

A  prisão

Em 4 de agosto de 1944, após a denúncia, a Gestapo invadiu o escritório da empresa e imediatamente se dirigiu à entrada do "Anexo Secreto", obrigando Victor Kugler a abri-lo. Seus ocupantes, o próprio Victor e Jo Kleiman foram presos. Assim que os nazistas deixaram o local, Miep Gies e Bep Voskuijl voltaram ao esconderijo e encontraram cadernos e anotações de Anne espalhados pelo chão,  que recolheram e guardaram juntamente com vários álbuns de fotos. As jovens decidiram, então, que Miep os guardaria para devolvê-los a Anne assim que a guerra terminasse. A mobília do Anexo foi confiscada e removida, por ordem da Gestapo.

No dia 3 de setembro todos os ocupantes do Anexo foram juntados a outros mil judeus, no último trem que saiu de Westerbork para Auschwitz, na Polônia. Testemunhas contam que Anne, Margot e Edith ficaram juntas até as duas irmãs serem transferidas, em outubro, para Bergen-Belsen, na Alemanha. No mês seguinte, Edith adoeceu, morrendo em janeiro de 1945, aos 44 anos.

Em Bergen-Belsen, para onde as jovens foram levadas, as condições de vida eram ainda piores que em Auschwitz e as duas irmãs logo contraíram tifo. Doente e muito fraca, Margot não resistiu, vindo a falecer em março com apenas 19 anos. A morte da irmã fez em Anne o que nada até então  fora capaz de fazer - quebrar seu espírito. Alguns dias mais tarde, faleceu. Não se sabe ao certo quando, mas a data universalmente aceita é 31 de março de 1945. Anne tinha 15 anos. Apenas algumas semanas depois, em 15 de abril, o campo foi libertado pelo exército inglês.

Das oito pessoas do "Anexo Secreto", apenas Otto sobreviveu, por milagre. Havia sido enviado para o barracão de doentes de Auschwitz, em novembro de 1944, enquanto outros prisioneiros do campo, cerca de 11 mil, evacuados pelos nazistas à medida que os russos avançavam, foram levados a pé nas terríveis Marchas da Morte, das quais poucos sobreviveram. E o pai de Anne se encontrava ainda lá quando, no dia 27 de janeiro de 1945, o campo foi libertado pelas forças soviéticas.

Dos 140 mil judeus que viviam na Holanda e se registraram junto às autoridades alemãs, 107 mil foram deportados. Desse total, apenas 5.500 retornaram. Cerca de 24 mil pessoas conseguiram esconder-se, 8 mil das quais foram capturadas. Apenas 35 mil judeus conseguiram sobreviver ao Holocausto na Holanda. Ou seja, 70% dos judeus holandeses foram vítimas da Shoá, um índice superior a qualquer outro registrado nos países ocupados pela Alemanha, na Europa Ocidental.

O legado de Anne Frank

A viagem de Otto de volta para Amsterdã durou vários meses. No trajeto, foi informado por uma amiga de Edith sobre a morte dela, em Auschwitz. Em junho, ele chegou à capital holandesa, onde encontrou, ainda funcionando, sua empresa Opekta, agora dirigida por Jo Kleiman. Procurou, desesperado, qualquer informação sobre o paradeiro das duas filhas, mas no mês seguinte foi obrigado a aceitar o fato de que não haviam sobrevivido. Miep lhe entregou então os cadernos que encontrara, dizendo: "Este é o legado de sua filha Anne para você".

Otto nunca desconfiara da existência daqueles registros. Estimulado por amigos, decidiu publicar o diário, mas não encontrou nenhuma editora interessada. Os manuscritos acabaram nas mãos do casal Romein, historiadores holandeses. Impressionado com o material, o Dr. Romein escreveu um artigo, "A Voz de uma Criança", para o renomado jornal Het Parool, onde afirmou: "Este diário de aparência infantil incorpora toda a hediondez do nazismo de forma muito mais visível e contundente do que todo o conjunto de evidências apresentadas perante o Tribunal de Nuremberg".

O artigo despertou o interesse de uma editora e, em junho de 1947, o "Diário de Anne Frank" foi publicado na Holanda, pela primeira vez. Otto conseguira realizar o desejo da filha: ser escritora. Desde sua publicação, o "Diário" foi traduzido para 67 idiomas, tornando-se um dos livros mais lidos no mundo. Seu texto deu origem a produções de televisão, cinema, teatro e, até mesmo, uma ópera.

66 anos depois

Em 9 de abril de 1944 Anne escreveu: "Um dia, esta guerra terrível acabará. Há de chegar à hora em que novamente seremos considerados seres humanos e não apenas judeus". Como já dissemos, seu diário termina no dia 1° de agosto de 1944. Ela não deixou nada escrito sobre os meses que passou nas mãos dos nazistas e sobre os campos de concentração. Anne Frank tornou-se para muitos a "face" de milhões de vítimas da Shoá, sem rosto e sem nome. 

O escritor Primo Levi, que sobreviveu a Auschwitz, explica: "Uma única Anne Frank nos emociona mais do que milhares de outros que sofreram tanto quanto ela, mas cujos rostos permaneceram na sombra. Talvez seja melhor desta forma, pois se tivéssemos que absorver o sofrimento de todas essas pessoas, talvez não estaríamos mais vivos".


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